Por Carlos Bernardo Loureiro
Não há filosofia autêntica enquanto o Espírito não se dobra sobre si mesmo, a fim de se examinar, afirma Will Durant, provavelmente com o pensamento voltado para o conhece-te a ti mesmo, sentença insculpida no frontispício do Templo de Apolo, em Atenas, adotada por Sócrates, nascido em Alópece, Ática, 470 e desencarnado em Atenas, 399 a.C.
Antes do filósofo alopecense, porém, despontaram pensadores tais como Tales de Mileto, Parmênides e Empédocles. Mas, na sua maioria, foram filósofos-físicos. As suas idéias, embora brilhantes, prendiam-se à physis, ou ao mecanismo das leis que regem o mundo mensurável. Sócrates, todavia sugeriu um mergulho alma adentro, na tentativa de se saber que era o homem, sua origem e seu destino. Formulou a respeito hipóteses e discutiu certezas. E se os homens de sua época discorriam sobre justiça, ele indagava: “Que é isso? Que significam essas palavras abstratas, por meio das quais se explicam, tão facilmente, os problemas da vida e da morte? Que entendem vocês de si mesmos?”
A essas solicitações do filósofo, argumentava-se que ele perguntava mais do que respondia, criando perplexidade e confundindo os espíritos. Essas e outras posturas levaram-no a enfrentar, compulsoriamente, mas com serenidade, a morte, que ele julgava a convalescença da doença da vida.
Sócrates imaginava edificar um Sistema Moral absolutamente independente de doutrinas religiosas que pudesse conduzir os homens (sem idolatria) à convivência pacífica, corolário do progresso ético e intelectual. Neste particular, guardadas pálidas proporções, o pensamento filosófico de Sócrates se identifica, eletiva e espiritualmente com o de Jesus. Numa sociedade organizada segundo as postulações socráticas, seria restituída ao indivíduo a liberdade que lhe fora usurpada pelo Estado. Sócrates entendia que a liberdade é a consciência; é o próprio homem; é o princípio divino do existir; é o único bem, cujo sacrifício, o Estado não pode reclamar. Ela é, enfim, a expressão de uma necessidade orgânica das relações do homem com o homem.
Segundo Heinrich Maier, a peculiar grandeza de Sócrates não se pode medir pela pauta de um pensador teórico. É importante encará-lo como o criador de uma atitude humana que definiu o apogeu de uma longa e laboriosa trajetória e libertação moral do homem por si próprio. Sócrates proclama o evangelho do domínio do Homem sobre si mesmo e da autarquia [1] da personalidade moral.
O princípio socrático do domínio interior do Homem tem implícito um novo conceito da liberdade. Sócrates fez da liberdade um problema ético, problema desenvolvido com intensidade diferente pelas escolas socráticas. De par com o desenvolvimento do conceito de domínio de si próprio (enkratia), vai se formando um novo conceito de liberdade interior [2].
Considera-se livre o homem que representa a antítese daquele que vive escravo dos seus próprios apetites. Fundamentalmente, portanto, a autonomia moral no sentido socrático significa a independência do Homem em relação à parte animal da sua natureza. Esta autonomia não está em contradição com a existência de uma lei cósmica em que este fenômeno moral do domínio do Homem sobre si mesmo se enquadre.
Outro conceito relacionado com este é o da autarquia, a ausência da necessidade. É, sobretudo em Xenofonte, provavelmente sobre a impressão das obras de Antístenes, que este conceito vigora com expressividade. Em contrapartida, este traço é menos acentuado em Platão, apesar do que se não pode duvidar da sua autenticidade histórica. Mais tarde desenvolveu-se de preferência na direção da ética pós-socrática, onde se constitui em critério decisivo do verdadeiro filósofo; nem em Platão nem em Aristóteles, porém, este traço deixa de aparecer na imagem da eudemonia filosófica [3].
A autarquia do sábio fez reviver no plano espiritual um dos traços fundamentais do antigo herói do mito helênico, representado pela figura de Héracles nos seus “trabalhos”, precisamente por ele “ajuda a si próprio”. A primitiva forma heróica deste ideal baseava-se na força do herói, que o fazia sair vencedor da luta contra os poderes inimigos, contra Espíritos malignos, etc. Esta força converte-se em força interior, a qual só é possível com a condição de o Homem limitar os seus desejos e aspirações ao que está realmente ao alcance de seu poder. O Homem deve aprender a dominar os monstros selvagens dos instintos, dentro de si próprio, dando lugar à sua espiritualidade.
Sócrates estava simplesmente além de seu tempo (e do nosso tempo). A sua visão de existência e de sociedade transcende os limites impostos pelo sistema, e se projeta incorruptível, no íntimo dos mais lídimos anseios de Justiça. O filósofo pensava como Espírito e se dirigia a Espíritos; daí decorriam os conflitos, suscitados pelas suas ideias.
Em suma: a mensagem do mestre de Platão é a representação viva do Ideal. E como afirma Rui (o nosso Sócrates): “O Ideal não se define, enxerga-se por clareiras que dão para o Infinito!”
Fonte: Jornal Suplemento Literário (Agosto de 1996)
[1] O substantivo autarquia não aparece em Xenofonte. O adjetivo autárquico figura numa passagem da Ciropédia e em quatro passagens das Memoráveis, como sentido filosófico de ausência de necessidades. Platão menciona a autarquia como parte da perfeição e beatitude do cosmo, e em Filebo, como qualidade fundamental do bem.
[2] Ao investigar todo o desenvolvimento da ética filosófica dos gregos a partir da socrática, H. Gomperz (Die Lebensauffassung der Griechschen Philosophen und das Ideal der Inneren Freilheit) lançou meridiana luz sobre a incontestável importância histórica de idéia da liberdade interior e, ao mesmo tempo, contribuiu essencialmente para a compreensão do pensamento do grande filósofo.
[3] Eudemonia filosófica: sistema de moral que tem por fim a felicidade do homem.
Não há filosofia autêntica enquanto o Espírito não se dobra sobre si mesmo, a fim de se examinar, afirma Will Durant, provavelmente com o pensamento voltado para o conhece-te a ti mesmo, sentença insculpida no frontispício do Templo de Apolo, em Atenas, adotada por Sócrates, nascido em Alópece, Ática, 470 e desencarnado em Atenas, 399 a.C.
Antes do filósofo alopecense, porém, despontaram pensadores tais como Tales de Mileto, Parmênides e Empédocles. Mas, na sua maioria, foram filósofos-físicos. As suas idéias, embora brilhantes, prendiam-se à physis, ou ao mecanismo das leis que regem o mundo mensurável. Sócrates, todavia sugeriu um mergulho alma adentro, na tentativa de se saber que era o homem, sua origem e seu destino. Formulou a respeito hipóteses e discutiu certezas. E se os homens de sua época discorriam sobre justiça, ele indagava: “Que é isso? Que significam essas palavras abstratas, por meio das quais se explicam, tão facilmente, os problemas da vida e da morte? Que entendem vocês de si mesmos?”
A essas solicitações do filósofo, argumentava-se que ele perguntava mais do que respondia, criando perplexidade e confundindo os espíritos. Essas e outras posturas levaram-no a enfrentar, compulsoriamente, mas com serenidade, a morte, que ele julgava a convalescença da doença da vida.
Sócrates imaginava edificar um Sistema Moral absolutamente independente de doutrinas religiosas que pudesse conduzir os homens (sem idolatria) à convivência pacífica, corolário do progresso ético e intelectual. Neste particular, guardadas pálidas proporções, o pensamento filosófico de Sócrates se identifica, eletiva e espiritualmente com o de Jesus. Numa sociedade organizada segundo as postulações socráticas, seria restituída ao indivíduo a liberdade que lhe fora usurpada pelo Estado. Sócrates entendia que a liberdade é a consciência; é o próprio homem; é o princípio divino do existir; é o único bem, cujo sacrifício, o Estado não pode reclamar. Ela é, enfim, a expressão de uma necessidade orgânica das relações do homem com o homem.
Segundo Heinrich Maier, a peculiar grandeza de Sócrates não se pode medir pela pauta de um pensador teórico. É importante encará-lo como o criador de uma atitude humana que definiu o apogeu de uma longa e laboriosa trajetória e libertação moral do homem por si próprio. Sócrates proclama o evangelho do domínio do Homem sobre si mesmo e da autarquia [1] da personalidade moral.
O princípio socrático do domínio interior do Homem tem implícito um novo conceito da liberdade. Sócrates fez da liberdade um problema ético, problema desenvolvido com intensidade diferente pelas escolas socráticas. De par com o desenvolvimento do conceito de domínio de si próprio (enkratia), vai se formando um novo conceito de liberdade interior [2].
Considera-se livre o homem que representa a antítese daquele que vive escravo dos seus próprios apetites. Fundamentalmente, portanto, a autonomia moral no sentido socrático significa a independência do Homem em relação à parte animal da sua natureza. Esta autonomia não está em contradição com a existência de uma lei cósmica em que este fenômeno moral do domínio do Homem sobre si mesmo se enquadre.
Outro conceito relacionado com este é o da autarquia, a ausência da necessidade. É, sobretudo em Xenofonte, provavelmente sobre a impressão das obras de Antístenes, que este conceito vigora com expressividade. Em contrapartida, este traço é menos acentuado em Platão, apesar do que se não pode duvidar da sua autenticidade histórica. Mais tarde desenvolveu-se de preferência na direção da ética pós-socrática, onde se constitui em critério decisivo do verdadeiro filósofo; nem em Platão nem em Aristóteles, porém, este traço deixa de aparecer na imagem da eudemonia filosófica [3].
A autarquia do sábio fez reviver no plano espiritual um dos traços fundamentais do antigo herói do mito helênico, representado pela figura de Héracles nos seus “trabalhos”, precisamente por ele “ajuda a si próprio”. A primitiva forma heróica deste ideal baseava-se na força do herói, que o fazia sair vencedor da luta contra os poderes inimigos, contra Espíritos malignos, etc. Esta força converte-se em força interior, a qual só é possível com a condição de o Homem limitar os seus desejos e aspirações ao que está realmente ao alcance de seu poder. O Homem deve aprender a dominar os monstros selvagens dos instintos, dentro de si próprio, dando lugar à sua espiritualidade.
Sócrates estava simplesmente além de seu tempo (e do nosso tempo). A sua visão de existência e de sociedade transcende os limites impostos pelo sistema, e se projeta incorruptível, no íntimo dos mais lídimos anseios de Justiça. O filósofo pensava como Espírito e se dirigia a Espíritos; daí decorriam os conflitos, suscitados pelas suas ideias.
Em suma: a mensagem do mestre de Platão é a representação viva do Ideal. E como afirma Rui (o nosso Sócrates): “O Ideal não se define, enxerga-se por clareiras que dão para o Infinito!”
Fonte: Jornal Suplemento Literário (Agosto de 1996)
[1] O substantivo autarquia não aparece em Xenofonte. O adjetivo autárquico figura numa passagem da Ciropédia e em quatro passagens das Memoráveis, como sentido filosófico de ausência de necessidades. Platão menciona a autarquia como parte da perfeição e beatitude do cosmo, e em Filebo, como qualidade fundamental do bem.
[2] Ao investigar todo o desenvolvimento da ética filosófica dos gregos a partir da socrática, H. Gomperz (Die Lebensauffassung der Griechschen Philosophen und das Ideal der Inneren Freilheit) lançou meridiana luz sobre a incontestável importância histórica de idéia da liberdade interior e, ao mesmo tempo, contribuiu essencialmente para a compreensão do pensamento do grande filósofo.
[3] Eudemonia filosófica: sistema de moral que tem por fim a felicidade do homem.