Paulo Henrique de Figueiredo
Júlio Nogueira
Na estatística elaborada por Kardec dez anos depois (RE67), ele constatou que a grande maioria dos espíritas (70%) tinha conhecimento do Espiritualismo Racional e adotava a teoria moral autônoma, ou seja, a de que o ato moral é consciente, racional e desinteressado. Uma parte menor vinha das religiões tradicionais (15%) e do materialismo (15%), mas estavam livres dos dogmas e abertos ao conhecimento. Estes últimos precisavam superar o paradigma moral falso dos castigos e recompensas da heteronomia ou submissão moral. Tendo a referência da autonomia intelecto-moral, os grupos auxiliares na elaboração da doutrina, que chegaram a mais de mil, compreenderam a ideia da evolução de todos os espíritos pela responsabilidade de sua livre escolha.
O pensamento dos espíritos superiores representava a harmonia das leis naturais que rege o universo desde sempre. Dialogando com estes, com o auxílio dos grupos, as pesquisas do prof. Rivail visavam refletir essa harmonia por meio de uma sólida unidade de princípios, que seria a maior força do Espiritismo, impedindo os cismas e apontando para a perpetuidade da doutrina. A tríplice unidade doutrinária (de princípios, de método e de organização) viria a ser um dos temas centrais das viagens espíritas que Kardec realizou a partir de 1860 para conhecer e orientar pessoalmente alguns dos grupos.
Para elaborar uma teoria cuja essência fosse fundamentada nas leis universais, Rivail precisou criar uma metodologia própria, o que fez de forma conjunta com espíritos superiores. Trata-se da universalidade do ensino dos espíritos. Os temas e dúvidas eram debatidos pelos espíritas, numerosas comunicações de diversos espíritos dando suas opiniões eram recebidas, as várias hipóteses para cada questão eram apresentadas na Revista Espírita. Quando o tema estava apropriadamente amadurecido, pelas opiniões dos homens e dos espíritos, e chegada a hora adequada para o entendimento de sua resolução, os espíritos superiores apresentavam universalmente o conceito fundamental, ou seja, comunicando-o por diversos espíritos, por diversos médiuns em diferentes grupos. Allan Kardec, ao perceber essa universalidade conceitual sobre o tema, analisava racionalmente a ideia e verificava sua compatibilidade com o núcleo da teoria fundamental já estabelecida inicialmente desde O Livro dos Espíritos. Por esse método, os conceitos fundamentais ampliavam progressivamente a teoria espírita. Foi a chamada “fase de elaboração” do Espiritismo, na qual esses procedimentos foram conduzidos pessoalmente por Kardec, na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas.
Nessa organização, voltada para os estudos e pesquisas, não havia qualquer espécie de subordinação ou dependência a uma instância superior de poder. Nem mesmo a Sociedade Parisiense possuía qualquer hegemonia sobre os demais grupos, a não ser uma autoridade científica, moral e filosófica. Coerentes com uma proposta científica e de moral livre (teoria da moral autônoma), a adesão aos princípios e a cooperação eram sempre voluntárias. A esse respeito, explica Kardec que "os espíritas não formam em nenhuma parte um corpo constituído; não são arregimentados em congregações obedecendo a uma palavra de ordem; não há entre eles nenhuma filiação patente ou secreta; eles sofrem muito simplesmente e individualmente a influência de uma ideia filosófica" (RE68).
Quando a fase inicial, conduzida pioneiramente por Kardec, já havia definido a base fundamental da doutrina, era preciso estabelecer uma estrutura permanente. Sendo o Espiritismo uma ciência dinâmica e que demanda aprofundamentos e atualizações para manter sua força, seria essencial uma organização que garantisse a manutenção da unidade e o progresso das pesquisas. Nessa nova fase, sua condução deveria ser coletiva, sendo que a dependência exclusiva do fundador foi uma condição apropriada, necessária e inevitável somente na fase inicial. Nesse contexto, os grupos interessados nas questões espíritas, além de compreender a unidade de princípios, também precisariam compor essa nova organização, com maiores responsabilidades.
Documentos inéditos obtidos em Paris e apresentados na obra Nem Céu nem Inferno - as leis da alma segundo o Espiritismo demonstram que Kardec, em seus últimos meses de vida, planejou em detalhes essa organização, que inauguraria a “fase de direção coletiva” do Espiritismo. Tratava-se de uma admirável e inovadora estrutura de hierarquia invertida com barreiras às ambições pessoais, sem um poder absoluto concentrado nas mãos de poucos. Haveria um comitê central com atividades compartilhadas em grupo e controlado por uma assembleia geral composta por representantes de grupos de todo o mundo, cada um deles em contato com os espíritos dedicados à criação da doutrina espírita. A continuidade da elaboração da teoria seria atividade coletiva da assembleia, mantendo o método da universalidade em sua relação com os espíritos. Já o comitê central estaria dedicado a questões administrativas do Espiritismo, e Rivail, em seus planos, pretendia participar apenas como um dos membros do comitê e da assembleia.
Nos últimos anos, Kardec já preparava essas mudanças, anunciando sua proposta, publicando textos prévios sobre a unidade da organização na Revista Espírita. A comunidade dos espíritas ansiava esse momento, inclusive fazendo arrecadações para sua implantação, após a transferência da sede da Passagem Sainte-Anne para a Villa Ségur, onde se instalariam as estruturas do Espiritismo, como o comitê central e a assembleia, e a inauguração da livraria e escritório da Revista Espírita na Rua de Lille.
Infelizmente, todo esse processo foi interrompido pela desencarnação do Professor Rivail e por um terrível golpe iniciado por indivíduos próximos a ele, que convenceram sua viúva Amélie Boudet a abrir mão do poder sobre toda a estrutura do Espiritismo (obras da Codificação, Revista Espírita e Livraria Espírita) em favor de uma empresa (a Sociedade Anônima da Caixa Geral e Central do Espiritismo), de índole exclusivamente comercial e com estrutura heterônoma. Em seguida, contrariando Kardec, a Sociedade Parisiense e os demais grupos, que aguardavam a execução dos planos do fundador, foram afastados da estrutura do Espiritismo, dominada pelos donos da Sociedade Anônima. O projeto de direção coletiva do Espiritismo foi totalmente abandonado. Estava quebrada a unidade de organização coletiva e de método da universalidade do ensino dos espíritos.
Mais grave ainda foram as adulterações nas obras O Céu e o Inferno e A Gênese, além das influências externas na Revista Espírita, que introduziram ideias dogmáticas heterônomas, de origem religiosa e materialista, opostas à moral autônoma própria da teoria espírita original, resultando numa quebra da unidade de princípios da doutrina, o que ainda hoje prevalece. Além disso, num contexto histórico mundial, o pensamento espiritualista racional foi expulso da Universidade e da cultura por sucessivas investidas políticas, religiosas e até do meio científico materialista, interessados na manutenção das ideias do velho mundo, com foco no interesse econômico propiciado pela revolução científica.
Sob a influência de diversas ideologias e teorias morais, sobretudo religiosas e materialistas, e sem um centro de referência que mantivesse as pesquisas sobre as bases originais da doutrina, o movimento espírita foi se afastando da unidade doutrinária e, por consequência, também se fragmentou, vendo surgir diversos cismas e dissidências em que geralmente predominam o misticismo, o fanatismo religioso, o ceticismo materialista e relações políticas baseadas no princípio de autoridade. Mesmo entre os mais instruídos, a maioria até hoje ignora a importância das ciências filosóficas para a compreensão do Espiritismo, que delas é o desenvolvimento.
Nos últimos anos vem ocorrendo uma recuperação sem precedentes da história e das ideias espíritas. Descobertas agora todas essas fraudes e reafirmada depois de quinze décadas a teoria moral original, é natural, entre aqueles que despertam, a vontade de implementar o plano de Kardec para a fase de direção coletiva do Espiritismo e retomar junto aos espíritos o trabalho de pesquisa e produção doutrinária.
Todavia, isso ainda não é possível, pois, além da quebra dos princípios, vivemos em um momento completamente diferente, formados e mergulhados em valores heterônomos (moral da submissão), de modo que qualquer estrutura será exercida segundo as teorias do velho mundo. Ocorreu também um abandono das práticas mediúnicas visando a pesquisa conceitual. Há um longo caminho para a recuperação de toda a teoria e a prática originais que se perderam, como a base espiritualista racional e psicológica, o diálogo com a diversidade dos espíritos, o debate das hipóteses entre encarnados e desencarnados, a mediunidade absolutamente desinteressada etc.
Diante de todas as recentes descobertas, a tarefa dos espíritas de hoje e das próximas gerações é a do restabelecimento, que se desenvolverá pelo processo científico, de estudos, artigos e debates para recuperar a definição clara dos princípios estabelecidos originalmente, livre de dogmas e desvios. Esse processo precisa ser secundado também pela recuperação das bases conceituais do Espiritismo, como a psicologia espiritualista, o Espiritualismo Racional e a teoria do magnetismo animal. A mediunidade deverá ressurgir nos moldes do absoluto desinteresse, próprio do método espírita. As comunicações deverão ser concebidas como opiniões dos espíritos e não a de oráculos ou profecias. Em seguida, após a recuperação dessas sínteses doutrinárias, uma ampla divulgação poderá surgir, por meio de obras didáticas e de divulgação científica. Essa recuperação será universal, pois o Espiritismo trata de um conhecimento que pertence às leis da natureza, interessando ao progresso moral da humanidade.
Iniciando pela adequada compreensão da ideia de autonomia intelecto-moral, a realização desse trabalho dependerá de grande abnegação de personalidade e do mais absoluto desinteresse pessoal para reunir harmonicamente os diferentes grupos em torno do mesmo ideal. Cada espírita deve perceber-se como pequena peça de uma enorme engrenagem, diminuindo sua importância individual, porque o Espiritismo é maior do que todos nós deste planeta, encarnados e desencarnados, sendo o pensamento da humanidade universal, em todos os tempos.
É manifesto que aqueles interessados pelo pensamento revolucionário das ideias espíritas possuem a missão de restabelecê-las. E somente a partir da recuperação gradual desse conhecimento, fundamentado nas leis naturais, será retomada a uniformidade de entendimento que instaura espontaneamente uma nova postura metodológica, moral e social. Por fim, surgirá naturalmente uma nova organização para a pesquisa do Espiritismo. Serão novos tempos, e então os espíritos superiores poderão utilizar essas novas condições para revisitar sua doutrina e comunicar novos princípios. Essa conquista, porém, não será de um grupo, mas da humanidade, pois a revolução moral é um fato natural pelo qual todos os rios, riachos e ribeirões do pensamento humano desaguarão inevitavelmente no oceano do bem.
Lucas Sampaio, Paulo Henrique de Figueiredo e Júlio Nogueira são pesquisadores, escritores e palestrantes espíritas nas cidades de Salvador-BA e São Paulo-SP, tendo trabalhado juntos na obra Nem Céu nem Inferno, as leis da alma segundo o Espiritismo (ed. FEAL, 2020).
Artigo originalmente publicado no Jornal Opinião (edição de jan/fev-2022). Acessível pelo link https://ccepa.org.br/jornais/janeiro-e-fevereiro-2022/